BAIRRO DAS CAIXAS


Situado na vila da Parede, em Cascais, este é um conjunto habitacional ímpar do urbanismo e da arquitectura moderna portuguesa. Foi projectado pelo arquitecto português Ruy Jervis d’Athouguia, entre os anos 1957 e 1960, e inaugurado em setembro de 1962.

Nasce no contexto de uma política de habitação desenvolvida pelo Estado Novo, que visava resolver o grave problema de habitação em Portugal, sobretudo nos centros urbanos em grande expansão. O organismo das Habitações Económicas – Federação de Caixas de Previdência (daí resulta o nome Bairro das Caixas) foi legislado em 1946 e veio permitir a utilização dos capitais da Previdência Social  para a promoção de habitação de carácter económico, dentro dos regimes de “Casas Económicas” e “Casas de Renda Económica”.

Estes programas tiveram uma enorme importância ao nível da produção arquitectónica no campo da habitação em Portugal, dado que a maioria dos projectos promovidos era elaborada por jovens arquitectos que estavam atentos ao panorama internacional e defendiam os novos ideais modernistas e os princípios defendidos no 1º Congreso Nacional de Arquitectura de 1948. Foi um período de grande efervescência - um laboratório de experiências arquitectónicas -, com a introdução de novos modelos de habitação, influênciados pelo estilo internacional que pretendiam adaptar à realidade do país.

Decorrente do seu serviço como técnico da Câmara Municipal de Cascais e dos contactos que estebeleceu, Ruy Athouguia viria a ser convidado em 1957 (já como profissional liberal), para realizar um plano para a construção de cerca de 300 fogos na Parede, para a Federação das Caixas de Previdência.

Desde o início do desenvolvimento do projecto, Ruy Athouguia executou inúmeros estudos de implantação do bairro, onde se denota, desde cedo, a procura por uma cuidada implantação e a intenção de criar um conjunto que pretende trazer um modelo urbano totalmente novo. Ruy Athouguia introduz então um modelo urbano mais próximo do conceito dos Siedlung alemães (com referências na Bauhaus de Dessau), numa reinterpretação e adaptação à realidade do lugar. Este modelo traz uma “maior proximidade e ligação ao próprio lugar, pela utilização de elementos que, embora de natureza neo-plástica, remetem intencionalmente para a memória da pedreira pré-existente no local (como são os casos dos muros de pedra e, sobretudo, dos subtís socos, verdadeiras bases de pedra sobre as quais assentam os Blocos), orientando-se para o habitante enquanto pessoa singular e de um lugar específico1. Do ponto de vista arquitectónico Ruy Athouguia consegue fazer um notável equilibrio e justaposição dos Siedlung alemães com os modelos mais dominantes da época decorrentes do manifesto Vers Une Architecture de Le Corbusier, desenvolvidos e disseminados pelos CIAM e consolidados na Carta de Atenas de 1933.

Podemos identificar a imagem de um conjunto urbano identitário, na qual predominam os grandes e longos blocos em banda, de formas depuradas e linhas puramente racionais, com uma evidente baixa densidade, cuja implantação dá espaço ao plano térreo e público, onde se privilegiam as áreas ajardinadas para lazer e recreação. Edificado sobre uma antiga pedreira, o bairro é constituído por sete blocos em banda (com um total de 20 lotes), paralelos entre si, numa orientação norte-sul, que se implantam perpendicularmente e a acompanhar a Avenida Gago Coutinho, com um espaçamento e ritmo notáveis. Do lado oposto, existem ainda três outros conjuntos edificados (com um total de 8 lotes) confinantes com a Rua Gil Vicente, que rematam o quarteirão a poente. Embora o projecto urbano inicial de Ruy Athouguia previsse edifícios a rematar a malha urbana a poente, aquilo que foi mais tarde edificado não corresponde ao desenho de Athouguia, embora se reconheçam algumas analogias nas janelas das cozinhas e nas varanda.

Os sete blocos (A a G) são de tipologia esquerdo/direito, com quatro andares - à excepção do A e B que têm mais um andar em semi-cave -, e dois fogos por piso, com coberturas de duas águas em telha. Existem três tipologias de habitação diferentes (T2+1 - Blocos A, B e C; T4+1 - Blocos D e E; T3+1 - Blocos F e G). As portas de entrada dos prédios, na fachada norte, são marcadas por um muro de pedra local, uma pala que protege o acesso e uns pequenos degraus que fazem a transição para a entrada. As fachadas a norte são marcadas também pelas janelas horizontais das zonas de cozinhas, casas-de-banho e lavandarias e pelos estendais protegidos pelos cobogós. Quanto às fachadas a sul, nas quais se localizam os quartos e salas, destacam-se as janelas generosas de sacada com abertura de correr e as varandas projectadas que constituem simultaneamente um prolongamento das salas e um sistema de sombreamento dos vãos maiores.

Entre os vários blocos, o conceito clássico da “rua-corredor” não fazia parte do projecto e dos ideiais de Ruy Athouguia, mas sim um conjunto ajardinado, um plano térreo livre, de fruição franca e o mais natural possível. Actualmente, estes espaços entre blocos transformaram-se mesmo em ruas-corredores, totalmente calcetadas e utilizadas quase exclusivamente para estacionamento automóvel. Apesar disso, entre blocos existem árvores de vários tipos, principalmente de folha caduca, que garantem uma certa naturalização destas ruas e, por outro lado, a necessária sombra nos meses de verão e exposição nos meses de inverno. No centro do conjunto habitacional esteve, desde a sua concepção inicial, prevista a existência de um grande jardim, funcionando como centro da vida de recreação e lazer ao ar livre; passados 55 anos de terreno baldio ao abandono, o jardim foi finalmente concretizado ao abrigo do Orçamento Participativo da Câmara Municipal de Cascais, através de uma proposta da comunidade local.

Para um conjunto urbano de “Casas de Renda Económica”, da década de 60 do século XX, com reduzido custo de construção, é de notar uma elevada qualidade da concepção arquitectónica, onde se evidenciam princípios a que, aos olhos de hoje, poderíamos enquadrar numa arquitectura sustentável e passiva: todas as divisões têm luz natural (redução do consumo de energia); todas as divisões com ventilação natural e cruzada norte-sul (aumento qualidade do ar); todas as casas têm um espaço exterior privado (promoção da relação interior-exterior); correcto sombreamento no verão e exposição no inverno (redução do consumo de arrefecimento e aquecimento). Naturalmente, com a evolução técnica e construtiva que os 60 anos que passaram trouxeram, sabemos que seriam necessárias várias outras valências para efectivar esta visão sustentável: janelas e portas térmicas, isolamentos térmicos e acústicos em paredes, pavimentos e coberturas, fontes de recolha e geração de energias renováveis, reaproveitamento de águas pluviais, entre outros. Elementos estes que poderiam ser implementados com o devido planeamento e coordenação, sem retirar a qualidade e identidade ao conjunto edificado e urbano.

É crucial compreender que o Bairro das Caixas é um património relevante que precisa de ser reconhecido, valorizado, preservado e modernizado, pois só assim poderá continuar a servir o seu propósito.


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fontes

1Miguel Cabral Pinto,  PROPOSTA DE RECTIFICAÇÕES À TOPONÍMIA
DO "BAIRRO DAS CAIXAS


Graça Correia Ragazzi. (2018). RUY D’ATHOUGIA. 1ª edição, Edições Afrontamento. Porto. ISBN: 978-972-36-1692-7 

Filipa Raquel Roque de Oliveira, (2012), HABITAÇÕES ECONÓMICAS - FEDERAÇÃO DE CAIXAS DE PREVIDÊNCIA, CASAS DE RENDA ECONÓMICA EM COIMBRA, Tese de Mestrado em Arquitectura, Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade de Coimbra


ficha técnica:
coordenador / Arqº. Adriano Niel
equipa / Arqª Filipa Abreu
design / And Atelier
fotografia / Nuno Almendra
vídeo / Leone Niel
website / Arqº. Adriano Niel


fontes:
Arquivo Municipal da Câmara Municipal de Lisboa / Arquivo Municipal da Câmara Municipal de Cascais / Associação de Moradores do Bairro das Caixas / Arquivos RTP e Cinemateca Portuguesa / Arqº. José Manuel Fernandes / Arqª Filipa Roseta / Arqª Graça Correia / Arqº Miguel Cabral Pinto, Moradores do Bairro das Caixas

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